segunda-feira, 14 de março de 2011

Patetas ao Volante

          Minha recente viagem ao Sul do país que, aliás, se repete quase todos os anos, haja vista ter família no Rio Grande do Sul, ainda continua me trazendo motivos para minhas reflexões. Como essas reflexões me induzem a repetir o hábito de postar meus blogs, aborrecendo amigos e leitores, em geral, eis-me aqui, escrevendo novamente. O tema, desta vez, é o trânsito. Não sou especialista em trânsito, mas, temos que considerar: Nada mais significativo como a maneira como pegamos ao volante de nossos carros e, em frente a ele, lidamos uns com os outros. Trânsito é psicologia, trânsito é meio ambiente... Trânsito, enfim, nos dias atuais, é como mostramos que tipo de bicho somos. Assim, autorizo-me a falar sobre trânsito, esquecendo-me, para isso, de tratar de estatísticas, motores, mobilidades urbana etc. O tema é o homem, ou melhor, o lobo que o homem é. Digo isso, lembrando-me do que me diz, com freqüência, meu grande amigo Maurício Verboonen: “O homem é o lobo do homem”.
          Quando menino, o que já começa a representar tempo considerável, divertia-me assistindo a um clássico desenho animado de Walt Disney (Sim, no meu tempo, “A Disney” ainda levava o nome de seu criador – Walt Disney), no qual um de seus mais interessantes personagens, o Pateta, mostrava o costume do motorista, em geral: Tornar-se um lobo, ao volante de seu carro. O desenho se iniciava com um Pateta maravilhosamente cordial, caminhando por uma daquelas civilizadas ruas das cidades de Disney, cumprimentando senhoras e vizinhos, cumulando de gentilezas todos aqueles que encontrava, em seu caminho, até... Até entrar em seu carro e, como num daqueles efeitos especiais dos filmes de Hollywood, transformar-se num monstruoso lobo, com dentes afiados, em fileiras de arcada de tubarão, babando copiosamente, com olhos arregalados, para sair em alta velocidade, da forma mais agressiva possível, numa “patética” (no sentido da palavra e não do personagem) competição com os demais e, principalmente, contra aqueles mesmos pedestres que, minutos antes, tratava com tamanha civilidade.
          Nunca assisti desenho mais filosófico do que o motorista-pateta de Walt Disney e, lembrando-me dele, tento sempre superar meu lobo selvagem, ao volante de meu carro, portando-me como criatura civilizada. Nada mais significativo sobre o grau de civilidade de um homem do que a maneira como se porta no trânsito. Porém, não tenho encontrado níveis aceitáveis de civilização, no trânsito de nossa terra. Isso poderia me levar àquelas mesmas lamúrias de todos, atribuindo isso aos mesmos problemas psicossociais que também têm ocasionado incremento na violência, na roubalheira etc. Sim, não há dúvidas de que vivemos uma crise moral de imensas dimensões. Porém, dois recentes acontecimentos me levaram a abrir a boca, ou melhor, a digitar um texto, falando sobre o tema. Não poderia ficar calado. Ao escrever, tenho certeza, estarei a contribuir para que, na medida em que se tornar possível, comecemos a combater este lobo que está nos destruindo, diuturnamente, roubando-nos a civilização que deveríamos estar cultivando.
          Um dos acontecimentos mais significativos, ninguém haverá de duvidar, foi aquele a que assistimos, em nossas televisões, dias atrás, quando um homem de aparência (Apenas aparência, é claro) normal acelerou seu carro sobre um grupo de ciclistas, que faziam um protesto, numa rua de Porto Alegre. Felizmente, ninguém morreu! Pura sorte, pois a cena era dantesca, com gente sendo lançada aos ares, pelo Pateta em fúria. O Pateta fugiu, sem prestar socorro, tendo – pasme – seu filho no banco do passageiro. O Pateta sanguinário surgiu na telinha, dias depois, metido num terno sóbrio, com uma carinha civilizada de dar pena. Um homem comum? Não, um Pateta como tantos outros, desta feita, com o jeitinho normal do Pateta de Disney, pois já estava fora de seu carro. Isso ocorreu no Rio Grande do Sul, um Estado que aprendi a cultuar, desde a infância, como um tipo de Europa do Brasil, no qual sempre me impressionava o nível de civilização, supostamente suportado pela ascendência alemã e italiana de seu povo.
          O segundo acontecimento, mais trágico, foi o resultado da Operação Carnaval da Polícia Rodoviária Federal, que registrou nada menos do que 200 mortes, em mais de 4.000 acidentes, país afora, no curtíssimo espaço de quatro ou cinco dias. Segundo a PRF, o crescimento foi de 50% sobre a base do ano anterior e uma série de hipóteses vieram, para tentar explicar os números: Aumento de carros nas estradas; Decadência da infra-estrutura viária; Álcool; Ultrapassagens; enfim, um monte de verdades sobre o desempenho do LOBO, ao volante de seus veículos. Porém, um aspecto discreto me chamou atenção, em meio às estatísticas sobre as quais pouco poderia falar. A estrada na qual se registrou a maioria das mortes foi a BR-101, em seu trecho catarinense. Trata-se daquela que liga as lindas praias de Santa Catarina ao Estado do Rio Grande do Sul. Para aqueles que não são familiarizados aos costumes gaúchos, tenho que explicar: O Rio Grande do Sul migra quase por inteiro, nas férias de verão e seus feriados próximos, para as praias, entre elas, as mais lindas e atraentes, situadas em Santa Catarina. Trata-se de uma debandada monumental, que esvazia Porto Alegre e demais cidades, transferindo para o litoral até emissoras de televisão e redes de lojas.
          O litoral do próprio Estado encontra-se hoje bem servido de rodovias, que são bem pavimentadas e fiscalizadas. Já Santa Catarina, coitada, enfrenta as agruras de uma duplicação prometida ao início do governo Lula, mas que se arrasta até hoje, causando transtornos os mais diversos. Mas, é claro que os lobos de bombachas não tolerariam a morosidade do trânsito na BR-101 catarinense e, como em tantos outros anos, insistiram em matar e morrer no caminho das praias. Assim, as mortes na estrada que liga Florianópolis a Porto Alegre não foram catarinenses, mas sim atribuíveis aos mesmos motoristas gaúchos, como aquele que levantou aos ares os ciclistas e que, até uns dias atrás, encontrava-se preso – Coisa pouco comum, no Brasil.
          Tudo isso me fez recordar que retornara do Rio Grande do Sul, no começo do ano, impressionado com suas paisagens, cada vez mais lindas, com seus vinhos, cada vez melhores, e com seus motoristas, cada dia mais selvagens. Imaginava como escrever este blog, desde então, o que era sempre atropelado (Êpa! Não pelos Patetas-Lobos) por temas mais agradáveis ou urgentes. Porém, depois desses dois acontecimentos, não pude mais esperar. De minhas impressões originais, da viagem de fim de ano, somente deverei relatar uma, para se juntar ao que falei, acima: Foi a horrenda experiência de trafegar pelas estradas gaúchas, especialmente aquelas que cortam a Região Serrana do Estado.
          Deixando Caxias do Sul, onde passei alguns dias, na direção de Bento Gonçalves, onde fica o admirável Vale dos Vinhedos, passando por Farroupilha, passei momentos de grande tensão, na direção de meu automóvel com minha família: Caminhões trafegavam em alta velocidade, carregados ou não, dirigindo a poucos centímetros dos carros que lhes ousassem ficar à frente, e ultrapassando em curvas cegas, em muitos casos, expulsando os que lhes viessem em direção contrária. Quando mal sucedidos em suas loucuras, fechavam sem constrangimento aqueles a quem tentavam ultrapassar e, não poucas vezes, buzinavam agressivamente, em protesto por lhes tomarem seu precioso tempo os veículos que ousassem trafegar de forma civilizada. Motoristas de automóveis não agiam de forma muito diferente, mostrando, todos eles, notáveis níveis de agressividade e desrespeito às leis de trânsito. Tudo que se via, nas estradas gaúchas, eram Patetas e mais Patetas, em suas versões de pele de lobo. Deixem-me apenas fazer uma ressalva, para que não me tenham como um “tranca-ruas”, desses que ficam molengando e atrapalhando o trânsito. Não sou definitivamente o tipo, podem ter certeza, e vivo grande parte de minha vida nas estradas do país, conhecendo muito bem suas estradas e seus tipos de motoristas. Posso dizer, então, sem medo de errar: Não conheço Estado que congregue tantos Patetas-Lobos, como meu querido e um dia idealizado Rio Grande do Sul.
         Ao externar minha impressão, para alguns interlocutores da região, sobre o aspecto contraditório de ter estradas assim, entregues à barbárie, ligando lugares de atratividade turística, tão famosos, como o Vale dos Vinhedos, Gramado e Canela, escutei resposta unânime e desalentadora: “Nossas autoridades não ligam para isso, pois acham mais importantes as indústrias da região, que provocam este trânsito (Especialmente de caminhões), do que o turismo, que gera menos impostos.” Pois é, meus amigos, o homem é decididamente o lobo do homem. O mundo dos negócios não é tradicionalmente “uma selva”? Com efeito, numa selva, não há lugar para os homens civilizados, mas somente aos lobos selvagens que habitam em nós. Somente poderei lamentar que meu Rio Grande do Sul, do qual trago tantos de meus hábitos, se tenha jogado nos braços da incivilidade, priorizando seus Patetas-Lobos, em vez de seus “Patetas-Gente-Boa”. Parafraseando o artista Gaúcho da Fronteira, um autêntico representante de meu velho Rio Grande, com seus versos e sua acordeona aragana, lá de Santa do Livramento: “O que é bom não se mistura e o que é ruim de longe vem”. É uma pena que os gaúchos se venham rendendo ao que de ruim de longe lhes tem vindo.


O Pateta Motorista de Walt Disney - Imagem comum em nossas ruas e estradas


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